quinta-feira, 22 de outubro de 2009

ROSELI FISCHMANN fala sobre o acordo firmado pelo Presidente e a Santa Fé.

O acordo assinado pelo presidente Lula com o Vaticano em 2008, que estipula a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas, foi aprovado pelo Senado. E agora?
ROSELI FISCHMANN É importante ressaltar que o documento assinado pelo presidente da República prevê vários privilégios para a Igreja Católica: benefícios adicionais em termos de verbas públicas e ações com impacto sobre a cidadania, como a supressão de direitos trabalhistas para sacerdotes ou religiosos católicos, e a inclusão de espaços para templos católicos em planejamentos urbanos. Nesta entrevista, nos interessa o artigo sobre a obrigatoriedade “do ensino religioso católico e de outras confissões religiosas”, como está no texto. Mesmo fazendo menção a outras crenças, o acordo manifesta uma clara preferência por uma religião, o que obriga as escolas a adotar uma determinada confissão, e isso é inconstitucional. O Ministério das Relações Exteriores defende a iniciativa dizendo que não há problema, já que ela apenas reúne aquilo que já existe. Mas isso não é verdade.

Esse artigo poderia ter sido corrigido pelos parlamentares?
ROSELI Eles poderiam ter rejeitado o acordo. Quaisquer propostas de ressalvas precisariam ser revistas pelo Executivo e, como o documento tem caráter internacional e bilateral, nada poderia ser mudado sem a concordância do Vaticano. Ou seja, ficamos amarrados, o que caracteriza uma perigosa interferência no processo legislativo.

Com o acordo em vigor, o que pode acontecer nas escolas?
ROSELI Em relação ao ensino religioso em escolas públicas, será instalada uma mixórdia que abre a possibilidade de interpretações discordantes. Ainda que mencionado o caráter facultativo para o aluno, está criada uma obrigatoriedade do ensino católico, o que não existe nem na Constituição nem na LDB. E a nossa Constituição está sendo violada.

Por que misturar escola com religião é ilegal?
ROSELI No artigo 19 da Constituição, há dois incisos claros. O primeiro afirma ser vedado à União, aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. O outro proíbe “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. Ambos são os responsáveis pela definição do Estado laico, deixando-o imparcial e evitando privilegiar uma ou outra religião, para que não haja diferenças entre os brasileiros. Ora, se o Estado é laico, a escola pública – que é parte desse Estado – também deve sê-lo.

E as leis educacionais?
ROSELI Na própria Constituição, o artigo 210, parágrafo 1º, determina o ensino religioso “facultativo para o aluno, nos horários normais das escolas públicas de Ensino Fundamental”, o que pode se considerar como parte da tal ressalva da “colaboração ao interesse público”, citada na resposta acima. Já o artigo 33 da LDB diz que “os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso”. Ou seja, essa entidade civil, a ser determinada, ou até criada, deve colaborar com a Secretaria de Educação em cada estado ou município. Isso é problemático porque quem quiser que a sua própria religião seja ensinada será obrigado a associar-se a essa entidade, ou não será sequer considerado no diálogo com o Estado, tendo assim violada sua liberdade de associação– um direito garantido pela Constituição.

A lei deixa margem a dúvidas?
ROSELI Alguns termos deixam sim. O que se considera “horário normal da escola”? O tempo que a instituição passa aberta ou aquele em que a criança efetivamente estuda? Uma coisa é certa: a lei é explícita ao declarar que o ensino religioso é facultativo. Porém o que se vê são escolas públicas desrespeitando a opção das famílias e professando, irregularmente, uma fé no ambiente educacional.

Como essa questão é tratada em outros países?
ROSELI Nos Estados Unidos, simplesmente não há ensino religioso em escolas públicas, de nenhum nível. A Revolução Francesa ensinou a relevância da laicidade e hoje o país debate para preservar o Estado laico. Portugal está saindo gradativamente de um acordo que o ditador Antonio Salazar assinou com a Santa Sé em 1940 e aboliu o ensino religioso das escolas públicas.

Como a religião está presente no cotidiano da escola pública brasileira?
ROSELI Ela aparece, sempre de forma irregular, das mais diversas maneiras: o crucifixo na parede, imagens de santos ou de Maria nos diversos ambientes, no ato de rezar antes da merenda e das aulas, na comemoração de datas religiosas. Alguns professores chegam a usar textos bíblicos como material pedagógico para o ensino da Língua Portuguesa ou para trabalhar conteúdos de outras disciplinas. É um equívoco chamar essa abordagem de “transversal” porque quem faz isso enxerta conteúdo de uma disciplina facultativa numa obrigatória.

Atitudes como essas podem ser consideradas desrespeitosas mesmo quando a maioria dos alunos é adepta da mesma religião?
ROSELI Não importa se a escola tem só um estudante de fé diferente (ou ateu) ou se 100% dos alunos e funcionários compartilham a mesma crença. A escola é um espaço público e deve estar preparada para receber quaisquer pessoas com o respeito devido.

Termos religiosos, como “graças a Deus” e “nossa” (que vem de Nossa Senhora), são usados até por quem afirma não professar nenhuma fé. Não é isso que, de alguma forma, ocorre nas escolas?
ROSELI Há expressões que são culturais e as pessoas não param para pensar se estão dizendo algo com sentido religioso. Isso é observável também em outras línguas, como o gee, do inglês, pela inicial do nome da divindade (god). Dificilmente um ateu deixará de ser ateu porque disse “nossa”. Porém o que se vê nas escolas públicas brasileiras é muito diferente. O que se faz lá fere a lei.

Com o aumento do número de evangélicos, as práticas dessa religião também aparecem nas escolas públicas?
ROSELI A grande presença no interior das escolas brasileiras ainda é a de práticas católicas. De outros grupos, o que existe muitas vezes é a manifestação de valores e atitudes, voltadas para garantir respeito à sua identidade religiosa, para se defender de tentativas de imposição, notadamente dos católicos.

Muitas escolas tratam de temas religiosos com os jovens alegando que isso ajuda a combater a violência.
ROSELI A religião não impede a violência. A ideia de que ela sempre faz bem é equivocada. Basta lembrar que grande parte das guerras teve origem em conflitos religiosos. Na escola, a violência deve ser combatida com o ensino ao respeito e ao reconhecimento da dignidade intrínseca a todos, não com o pensamento de que apenas as pessoas que acreditam na mesma divindade merecem consideração.

Por que é importante separar a religião do cotidiano escolar?
ROSELI A escola pública não pode se transformar em centro de doutrinação ao sabor da cabeça de um ou de outro. O espaço público é de todos. Além disso, o respeito à diversidade é um conteúdo pedagógico. É importante aprender a conviver com as diferenças e a valorizá-las e não criar um ambiente de homogeneização, em que aquela pessoa que não se enquadra é deixada à parte ou vista com desconfiança e preconceito.

Como deve agir o gestor escolar para evitar irregularidades?
ROSELI O diretor da escola pública tem uma missão importante: fazer daquele espaço um lugar efetivamente para todos. Para tanto, o ensino religioso só deve existir se houver um requerimento dos pais solicitando-o. Caso contrário, não pode nem estar na grade. E, para que os filhos sejam matriculados na disciplina, é preciso que a família dê uma autorização por escrito. Os alunos não podem, em hipótese alguma, ser obrigados a frequentar essas aulas. As horas dedicadas à religião não devem ser computadas no histórico escolar para que os não-matriculados não tenham registrada uma carga horária menor do que os outros. O ideal é que o ensino religioso, quando houver, seja oferecido no contraturno. Nesse caso, cabe à escola disponibilizar outra atividade não religiosa no mesmo horário para configurar o caráter facultativo e a igualdade entre todos os alunos.

O que os pais podem fazer caso sintam que a escola está desrespeitando a liberdade religiosa?
ROSELI Tanto o Conselho Tutelar quanto o Ministério Público têm como função garantir o cumprimento das leis, inclusive as educacionais, e qualquer um desses órgãos pode ser acionado por quem achar que está tendo seus direitos violados.

As escolas confessionais e as particulares podem professar a sua fé?
ROSELI Sim. Os pais têm o direito de escolher a formação que querem dar aos filhos. A primeira LDB, de 1961, reconheceu (após muita polêmica) que deveria haver escolas particulares e, com elas, as confessionais, o que persiste até hoje. Na época, pensou-se no que fazer quando a família não tem condições financeiras para colocar a criança nessas instituições. Foram criadas então as bolsas de estudo, que são a origem do sistema de filantropia nas escolas. Porém essas escolas precisam seguir os PCNs e ensinar Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e as outras disciplinas. Assim a criança vai aprender o que diz a fé, pela qual seus pais a colocaram ali, sem deixar de conhecer o que defende a Ciência.

Quais as implicações na formação integral da criança quando ela tem seu credo – ou a opção por não seguir nenhuma crença – desrespeitado?
ROSELI Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a família tem primazia na escolha da Educação que deve dar aos filhos, inclusive quanto à doutrina religiosa a seguir. Se em casa as crianças aprendem a cultuar de uma forma e na escola de outra, nasce um conflito de valores que pode comprometer a aprendizagem. Não é possível haver a imposição religiosa no ambiente educativo.

Roseli Fischmann, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Metodista, de São Bernardo do Campo, na região metropolitana da capital paulista. Perita da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a Coalizão de Cidades contra o Racismo e a Discriminação, responsável pelo capítulo sobre pluralidade cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), coordenadora do grupo de pesquisa Discriminação, Preconceito e Estigma, vinculado à USP, e do Núcleo de Educação em Direitos Humanos, da Universidade Metodista e autora do livro Ensino Religioso em Escolas Públicas: Impactos sobre o Estado Laico, Roseli critica o acordo e fala, nesta entrevista a NOVA ESCOLA GESTÃO ESCOLAR, sobre as diversas e sempre irregulares maneiras de manifestação religiosa no cotidiano escolar.

Um comentário:

  1. Prezados,
    Não sei se intenção da colega foi reduzir uma área do conhecimento, assegurado no currículo da escola do ensino fundamental dos anos finais. O facultado é para ao aluno, mas obrigatório é a escola. As diferentes concepções existem, claro, mas é importante conhecer a natureza desse ensino que contribui também com a formação integral do cidadão. O Ensino Religioso, segundo as leis vigentes não se compromete com uma ou outra religião, mas sim com a diversidade, a pluralidade e as diferentes formas de transcendência, subsidiado por métodos e teorias educacionais nas quais asseguram o crescimento cognitivo do aluno e seus anseios diante da finitude humana. Negar essa dimensão do ser humano é comprometer sua integridade, como afirmam vários estudiosos, das diversas áreas do conhecimento. É de conhecimento de todos que estudam que os currículos estão cheios de ideologias, são permeados pelas multifaces do poder e não são neutros, dentre outros aspectos, ou seja, quem realmente faz como prevê as leis educacionais???
    O problema maior é que a maioria não aborda, não tem interesse e nem se dá conta da responsabilidade de trabalhar o diferente e suas diferenças na escola. Eu fico surpreso nesse blog sobre a publicação dessa concepção com relação a disciplina, visto que a mesma tem atendido as demandas da educação para as relações étnico-raciais, basta olhar e conhecer que tem formação na área do ensino religioso.
    Por isso, dizer que a religião justificou tantas guerras e se esquecer das reais motivações disso é estar à parte da história e das formas de poder. Assim como a ciência, a religião é um conhecimento humano (PCNER), o problema é o ser humano que se apropria dos conhecimentos para destruir sua própria semelhança. É só perceber melhor a história da humanidade e da ciência. E as teorias científicas que reduziram os negros a bestas humanas e com relação aos índios...
    Então, não podemos achar que um conhecimento é melhor que o outro nem nossa concepção pessoal sobre uma realidade. Se a igreja está tentando marcar sua presença, claro, ela sempre fará isso, mas nós como educadores temos que nos posicionar contra esse tipo de coisa e lutar pelo estado laico e pelos respeito às diferenças e isso é claro que não pode ser atribuindo juízos a coisas que desconhecemos. Logo, procurem conhecer as experiências inter-religiosas promovidas por professores que tenham formação na área e não a práticas de pessoas desabilitadas que são sustentadas por pessoas que detém o poder público...
    Nisso, imagine o mundo sem a CIÊNCIA...
    Agora, imagine o mundo sem a RELIGIÃO...
    Tanto conhecimento pra quê???
    Como os mestres e doutores contribuem com a sociedade?
    O problema é falar, mas quem conhece o dia-a-dia da escola...

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